A INVESTIGAÇÃO-ACÇÃO
No âmbito desta semana de estudo em torno do polémico tema da Investigação-Acção, deparei-me, na clássica obra de Richard I. Arends - Aprender A Ensinar (Alfragide, McGraw-Hill, 1997), com uma unidade intitulada «Investigação-Acção Para O Professor».
Entre as páginas 525 e 534, o autor faz uma excelente síntese da Investigação-Acção, começando por afirmar que «os professores podem tornar-se investigadores, com o objectivo de contribuírem para a melhoria do ensino e dos ambientes de aprendizagem na sala de aula».
A Investigação-Acção consiste, como toda a investigação, num processo de colocar questões, procurar respostas válidas e o mais objectivas possível e de interpretar e utilizar os resultados. A sua especificidade está no facto de ter como objectivo a aplicação imediata, consistindo «num processo de aquisição de informação e conhecimento para ser posto ao serviço do próprio professor/investigador que o realiza».
Este modo de fazer investigação resulta de mais de um século de pensamento e foi muito influenciada por John Dewey (que lamentava a apropriação, por parte das ciências sociais, do modelo das ciências naturais, o que conduziu à separação entre ciência e prática), Kurt Lewin e Les Corey e associados no Teachers College. Mais recentemente, o campo foi influenciado por Donald Schon e Chris Argyris.
Arends recorda o papel de Lawrence Stenhouse (1975, 1983, 1984) e de David Hopkins (1985), os quais muito contribuíram para que, hoje em dia, a ideia do professor como investigador ganhe cada vez mais aceitação nos EUA, Reino Unido, Canadá e Austrália.
Seguidamente, apresenta as duas premissas que considera serem a base da Investigação-Acção:
- O profissional autónomo (na linha do que pensava Stenhouse, os professores não devem depender de directores, supervisores ou professores universitários para lhes dizerem o que fazer, mas devem ter autonomia para criarem eles próprios conhecimento);
- Informação é poder (os próprios professores é que devem recolher informação válida sobre as suas aulas; utilizar essa informação para tomarem decisões fundamentadas relativas a estratégias de ensino e actividades de aprendizagem e partilhar informação com os estudantes para os motivarem).
O autor invoca depois os sete passos de Lyman para a Investigação-Acção:
1. Pensando na sala de aula, identifique um problema que pensa poder ser resolvido recorrendo a uma abordagem diferente ou a outra estratégia de ensino.
2. Explicite uma questão que inclua as variáveis independente e dependente(s).
3. Repare que a diferença (ou diferenças) que procura constituem as variáveis dependentes.
4. Decida quais são os indicadores das variáveis dependentes.
5. Planeie a experiência, de modo a manter constantes o maior número possível de variáveis.
6. Peça auxílio para a recolha dos dados.
7. Organize e escreva os resultados de modo a que possam ser partilhados com os outros, particularmente com os colegas e os alunos.
Segue-se a apresentação da condução da Investigação-Acção, começando pelas três partes fundamentais do processo:
1. Decidir quais os problemas a estudar e explicitar as questões concretas.
2. Recolher informação válida.
3. Interpretar e utilizar esta informação com o objectivo de melhorar o ensino.
Assim, os passos da Investigação-Acção são os seguintes:
1. Formulação do Problema e Questões
2. Recolha de Informação
3. Interpretação e Utilização da Informação
A fase mais complicada é, sem dúvida, a primeira: a identificação de um problema específico e a definição cuidadosa das variáveis envolvidas. David Hopkins identificou 5 princípios:
1. O problema não deve interferir com a actividade principal do professor, que é o ensino, pois o objectivo da I-A é compreender e melhorar o ensino e não o prazer de fazer investigação pelo prazer intrínseco que esta possa trazer.
2. Os métodos de recolha de dados não devem ocupar excessivamente o professor, já de si muito ocupado.
3. Os métodos utilizados devem facultar informações fidedignas e válidas, apesar de o objectivo não ser generalizar. Se os métodos usados não forem rigorosos e a informação resultante não for precisa e válida, o seu valor é nulo.
4. O problema a estudar deverá ser de particular interesse para o professor e ser susceptível de solução.
5. As normas éticas de investigação também se aplicam à investigação conduzida pelos professores, obviamente: informar os sujeitos sobre os objectivos do estudo, obter autorização destes antes da recolha de informações sensíveis, manter a confidencialidade e respeitar os direitos dos sujeitos.
Sobre os problemas, Arends afirma que, por vezes, estes não podem ser claramente explicitados no início e acrescenta que um bom problema é aquele que:
1. Pode ser formulado em termos de questão.
2. Diz respeito a relações entre variáveis.
3. É susceptível de teste empírico.
Apresenta as três categorias de questões com que o professor se depara normalmente na escola:
1. Questões relativas às opiniões dos estudantes
2. Questões relativas a procedimentos ou estratégias de ensino particulares
3. Questões relativas à comparação entre diferentes abordagens ou variações da mesma abordagem no tempo ou com grupos diferentes.
Quanto à recolha da informação, existem várias formas de recolher, umas mais complexas que outras. A decisão depende das questões a que se pretende responder e do tempo que o professor tem à disposição para recolher e analisar a informação. São sugeridas quatro abordagens possíveis:
- Questionários
- Entrevistas
- Observações
- Notas e Diários.
O capítulo termina com um exemplo de Investigação-Acção efectuada por um docente em início de carreira, aquando da sua formação inicial, levada a cabo no ano de 1989.
Reflexão crítica
Penso que as palavras de Arends vão no sentido de desmistificar a tradição positivista e tradicionalista que tende a identificar investigação com o paradigma quantitativo e a desvalorizar as metodologias essencialmente qualitativas. A Investigação-Acção, apesar de usar também métodos quantitativos, não rejeita a subjectividade, antes pelo contrário, assume que o investigador deve até ter uma atitude militante, o que não invalida que não seja honesto e rigoroso. A Investigação-Acção, inicialmente silenciada pelos manuais de investigação, à medida que desenvolve e cria cada vez mais conhecimento, derruba, gradualmente os dois mitos basilares da ciência clássica: o mito da independência e da objectividade e o mito de que a investigação é algo que só um escol de especialistas é capaz de realizar com qualidade.
sexta-feira, 16 de maio de 2008
segunda-feira, 12 de maio de 2008
Leituras
FICHA DE LEITURA
Almeida, João Ferreira de e Pinto, José Madureira
1986 'Da Teoria à Investigação Empírica. Problemas Metodológicos Gerais', in «Metodologia das Ciências Sociais (Organização de Augusto Santos Silva e José Madureira Pinto). Porto: Edições Afrontamento.
Devido às saudáveis dificuldades que o dia-a-dia desta unidade tem colocado a quem, como eu, já andava há muito arredada destas temáticas ligadas à investigação em educação e em ciências sociais, em geral, decidi apresentar o artigo acima referido por me parecer que coloca questões pertinentes para todos nós, apesar de já ter duas décadas.
O estudo em causa insere-se num conjunto de XI trabalhos de um leque variado de especialistas que leccionavam (alguns já faleceram, como é o caso de Armando Castro) na Universidade do Porto, mais concretamente na Faculdade de Economia, abrangendo áreas que vão da sociologia à antropologia e da história à psicologia social e à economia. Na verdade, um dos aspectos que me atraiu nesta obra (com cerca de 320 páginas) foi esta preocupação interdisciplinar, por um lado, e a vertente qualitativa, mesmo em economia, ciência que muitas vezes é associada apenas a aspectos quantitativos. A título de exemplo, tanto temos o capítulo III sobre «O Uso das Estatísticas em Economia», como o capítulo VIII sobre «A Recolha de Informação não estatística em Economia». Há também estudos sobre a observação participante, a investigação-acção, o inquérito por questionário e o método experimental em ciências sociais. Todos os capítulos têm Orientações Bibliográficas.
O objectivo da obra é fornecer a estudantes e investigadores «um útil instrumento de trabalho» e «despertar o interesse por uma aprendizagem minuciosa dos procedimentos técnicos existentes e de estimular uma apreensão ágil e profunda dos quadros teóricos, eventualmente transgressores de fronteiras disciplinares» (Prefácio, p.8). Ainda no Prefácio, os organizadores fazem questão de citar Bachelard, qualquer discurso sobre o método científico há-de ser sempre «un discours de circonstance», para deixarem bem claro que não pretendem fornecer nenhum «receituário técnico com validade universal».
Assim, o estudo que escolhi para aqui apresentar (com um total de 23 páginas – entre a p. 55 e a p. 78)) começa com uma longa introdução (4 páginas), em que se expõe a ideia-base de que partem os seus autores: a observação metódica da realidade social tem evoluído e ganho prestígio, igualando-se às ciências físicas e da natureza, graças ao desenvolvimento de procedimentos padronizados de recolha de informação sobre o real (técnicas do inquérito por questionário, entrevista e análise de conteúdo), mas as conquistas só serão efectivas se se partir da teoria, «conjunto organizado de conceitos e relações entre conceitos (…) esse património acumulado de interpretações provisoriamente validadas» (pp. 55-56). Porém, apesar de considerarem que a teoria deve ser o ponto de partida e comandar os seus momentos e opções fundamentais, a análise de situações concretas não pode circunscrever-se necessariamente «num círculo traçado de antemão, em forma definitiva, pelo conjunto de hipóteses pertinentes incluídas na matriz teórica», sendo necessário «ajustar, especificar ou mesmo reformular», pois «preservar a todo o custo a tipologia inicialmente considerada, em nome de um primado epistemológico absoluto da teoria ou de um conformismo de repetição, constitui (…) efectivo obstáculo ao progresso científico» (pp. 57-58).
Outra cautela a ter em conta é que neste domínio científico os processos de recolha da informação são, eles próprios, processos sociais, pelo que se colocam, com particular acuidade, as questões epistemológicas da relação observador/observado, as quais devem ser analisadas à luz de teorias auxiliares, sem que, como o próprio nome indica, se substituam à teoria principal.
É nesta perspectiva que se seguem os dois pontos, em torno dos quais se desenvolve o estudo, intitulados, respectivamente, «Construção e Verificação de Teorias: Problemas e Controvérsias» e «Problemas Específicos da Observação e da medida em Ciências Sociais». Não existe qualquer conclusão.
O primeiro ponto (9 páginas) acima referido, subdivide-se em outros três: Rupturas e Demarcações; A Construção da Teoria e O problema da Verificação.
Neste capítulo os autores chamam a atenção para aquilo que denominam de «formas contemporâneas de cientismo», nomeadamente, os «imperialismos disciplinares», ou seja, a demarcação rígida de fronteiras entre as ciências sociais, «indesejável feudalização, poucas vezes compensada pela busca de complementaridades e de recíprocas fertilizações que a pluri e a interdisciplinaridade propõem» (p. 60).
Rejeitando a tradição empirista-positivista, citam Popper, Lakatos e Giddens e apropriam-se do conceito de matriz teórica, assumindo que as respostas que se obtém são condicionadas pela forma e os protocolos da pergunta e que «cada formação científica propõe, assim, um conjunto articulado de questões – a sua problemática teórica (…) ponto de partida das pesquisas que se efectivam, define e acolhe problemas de investigação, para os quais se buscam respostas». Surgem teorias auxiliares ou regionais formadas de preposições, conceitos e vias metodológicas capazes de analisar dimensões da realidade «sem quebra dos fluxos de dois sentidos entre o conjunto do paradigma de partida e as operações de recolha e tratamento da informação pertinente» (p. 63). Esta questão relaciona-se com a possível contaminação da observação pela teoria, ao que os autores respondem com a ideia popperiana de substituição do conceito de verdade pelo de verosimilhança, insistindo na ideia da capacidade auto-correctora de percursos já trilhados, mesmo que não surgissem «imprevistos, surpresas e anomalias».
O problema da verificação é-nos apresentado na linha das críticas ao justificacionismo (só seria científico o que fosse positivamente demonstrado pelos factos), citando o «peru indutivo» de Russel e o falsificacionismo de Popper. Uma vez desculpabilizadas das impossibilidades de prova e das dificuldades de invalidações concludentes, os autores criticam Kuhn por considerar as ciências sociais pré-paradigmáticas e propõem que será mais adequado «considerá-las pluri-paradigmáticas», pois cristalizaram «uma longa e parcialmente incomunicável coexistência de paradigmas rivais e de não-paradigmas» (p.67).
Assim, relativizada a lógica da verificação, o problema desloca-se para os procedimentos de pesquisa, os quais são abordados no capítulo seguinte, «Problemas Específicos da Observação e da Medida em Ciências Sociais», o qual de subdivide em dois pontos: A Medida e a Construção de Indicadores em Ciências Sociais e Relações Sociais de Observação e Teorias Auxiliares da Pesquisa.
Ao longo das 10 páginas que constituem este capítulo, os autores centram a sua atenção nos indicadores, ou melhor, na tradução dos conceitos em bons indicadores (variáveis ou índices), porque «só estes têm efectiva utilidade para a análise de situações concretas, visto que também só eles são adequados à medida dos fenómenos sociais» (p. 69). Definem indicador ou variável como «um conceito que permite, em relação a um objecto de conhecimento teoricamente relevante, operar no mesmo uma partição em classes de equivalência mais ou menos extensas» e valor como o «predicado ou característica atribuído a qualquer elemento das classes de equivalência do conjunto considerado» (p. 70).
O grande problema que se coloca na selecção dos indicadores é o da validade da medida, ou seja: como decidir se, com os indicadores seleccionados, se está a medir de facto aquilo que se quer medir? Esta operação é de um grau de complexidade muito grande, o que aumenta ainda quando se passa dos indicadores definitórios (por exemplo, a idade) aos correlacionais internos (usar, por exemplo, a profissão como único indicador para inserir numa classe social pode ser redutor) e/ou externos (definir o status socioeconómico como indicador de certos valores) ou aos de inferência (usados quando é impossível observar os atributos a operacionalizar).
Citam várias propostas de ultrapassagem destes problemas, como as de Glasser e Strauss e Hubert Blalock, no sentido de «se accionarem teorias auxiliares particulares articulando, em redes conceptuais suficientemente densas, os operadores teóricos pertencentes a cada um dos níveis de especificação estratégicos com os indicadores e as soluções técnicas que regionalmente lhes correspondam no plano da observação empírica» (p. 75).
Desta problemática decorre a grande dúvida: estarão os cientistas sociais condenados a confiar apenas na intuição?
Os autores acreditam que não e invocam vários argumentos, entre os quais, os progressos que se têm verificado no aperfeiçoamento das técnicas de recolha de dados, nomeadamente «sobre a pesquisa de terreno em sociologia e o trabalho de campo em antropologia e sobre o inquérito por questionário (…) boa demonstração de que o nosso optimismo quanto às possibilidades de uma reconversão inovadora da metodologia neste domínio está longe de ser infundado» (p.76).
O artigo termina com uma alusão a possíveis enviesamentos nas pesquisas decorrentes daquilo a que Pierre Bourdieu denominou de «mercado linguístico», o qual determina os actos de fala e pode conduzir a demissões, silêncios, evitamentos, delegações em informantes considerados privilegiados e bem-falantes, citando a boa alternativa da entrevista colectiva. Esta técnica, apesar de reduzir «o grau de tensão inibidora associado à relação convencional inquiridor-inquirido», pode também «favorecer o exercício de formas de censura cruzada». No entanto, a constatação de todas estas perplexidades metodológicas não invalida a sua ultrapassagem «se formos capazes de cruzar numa rede conceptual necessariamente densa e complexa, hipóteses relativas à teoria do objecto (principal) e a teorias auxiliares da pesquisa em que um conjunto de elementos de objectivação das relações sócio-simbólicas de observação ocupe posição central» (p. 78).
ANÁLISE CRÍTICA
A leitura atenta deste estudo confirmou-me aquilo que os nossos trabalhos nesta unidade têm mostrado e que as nossas docentes tão bem têm demonstrado: a investigação em educação e ciências sociais tem as suas especificidades. Por outro lado, a crise do racionalismo tem demonstrado que todo o conhecimento é socialmente construído e a busca de objectividade no sentido cartesiano não é definidora da ideia de ciência. A meta das ciências é a explicação de fenómenos e a busca de soluções, passando pela definição racional de problemas e respectiva pesquisa. Cada disciplina acede ao estatuto de ciência quando é capaz de construir o seu objecto e elaborar um conjunto coerente de conceitos e relações entre eles (teorias), submetendo-se a sucessivas provas de validação. As explicações científicas só o são, se testáveis, mas isto não implica submissão ao modelo lógico-matemático. Os fenómenos sociais são irrepetíveis e fluidos, logo complexos e pluridimensionais e a sua apreensão é sempre útil de qualquer ângulo, portanto, a subjectividade não só não é obstáculo como até é enriquecedora, desde que sejam respeitados critérios rigorosos e diversificados de recolha. Não se pretende nunca prever fenómenos, mas tão só compreender a realidade.
Almeida, João Ferreira de e Pinto, José Madureira
1986 'Da Teoria à Investigação Empírica. Problemas Metodológicos Gerais', in «Metodologia das Ciências Sociais (Organização de Augusto Santos Silva e José Madureira Pinto). Porto: Edições Afrontamento.
Devido às saudáveis dificuldades que o dia-a-dia desta unidade tem colocado a quem, como eu, já andava há muito arredada destas temáticas ligadas à investigação em educação e em ciências sociais, em geral, decidi apresentar o artigo acima referido por me parecer que coloca questões pertinentes para todos nós, apesar de já ter duas décadas.
O estudo em causa insere-se num conjunto de XI trabalhos de um leque variado de especialistas que leccionavam (alguns já faleceram, como é o caso de Armando Castro) na Universidade do Porto, mais concretamente na Faculdade de Economia, abrangendo áreas que vão da sociologia à antropologia e da história à psicologia social e à economia. Na verdade, um dos aspectos que me atraiu nesta obra (com cerca de 320 páginas) foi esta preocupação interdisciplinar, por um lado, e a vertente qualitativa, mesmo em economia, ciência que muitas vezes é associada apenas a aspectos quantitativos. A título de exemplo, tanto temos o capítulo III sobre «O Uso das Estatísticas em Economia», como o capítulo VIII sobre «A Recolha de Informação não estatística em Economia». Há também estudos sobre a observação participante, a investigação-acção, o inquérito por questionário e o método experimental em ciências sociais. Todos os capítulos têm Orientações Bibliográficas.
O objectivo da obra é fornecer a estudantes e investigadores «um útil instrumento de trabalho» e «despertar o interesse por uma aprendizagem minuciosa dos procedimentos técnicos existentes e de estimular uma apreensão ágil e profunda dos quadros teóricos, eventualmente transgressores de fronteiras disciplinares» (Prefácio, p.8). Ainda no Prefácio, os organizadores fazem questão de citar Bachelard, qualquer discurso sobre o método científico há-de ser sempre «un discours de circonstance», para deixarem bem claro que não pretendem fornecer nenhum «receituário técnico com validade universal».
Assim, o estudo que escolhi para aqui apresentar (com um total de 23 páginas – entre a p. 55 e a p. 78)) começa com uma longa introdução (4 páginas), em que se expõe a ideia-base de que partem os seus autores: a observação metódica da realidade social tem evoluído e ganho prestígio, igualando-se às ciências físicas e da natureza, graças ao desenvolvimento de procedimentos padronizados de recolha de informação sobre o real (técnicas do inquérito por questionário, entrevista e análise de conteúdo), mas as conquistas só serão efectivas se se partir da teoria, «conjunto organizado de conceitos e relações entre conceitos (…) esse património acumulado de interpretações provisoriamente validadas» (pp. 55-56). Porém, apesar de considerarem que a teoria deve ser o ponto de partida e comandar os seus momentos e opções fundamentais, a análise de situações concretas não pode circunscrever-se necessariamente «num círculo traçado de antemão, em forma definitiva, pelo conjunto de hipóteses pertinentes incluídas na matriz teórica», sendo necessário «ajustar, especificar ou mesmo reformular», pois «preservar a todo o custo a tipologia inicialmente considerada, em nome de um primado epistemológico absoluto da teoria ou de um conformismo de repetição, constitui (…) efectivo obstáculo ao progresso científico» (pp. 57-58).
Outra cautela a ter em conta é que neste domínio científico os processos de recolha da informação são, eles próprios, processos sociais, pelo que se colocam, com particular acuidade, as questões epistemológicas da relação observador/observado, as quais devem ser analisadas à luz de teorias auxiliares, sem que, como o próprio nome indica, se substituam à teoria principal.
É nesta perspectiva que se seguem os dois pontos, em torno dos quais se desenvolve o estudo, intitulados, respectivamente, «Construção e Verificação de Teorias: Problemas e Controvérsias» e «Problemas Específicos da Observação e da medida em Ciências Sociais». Não existe qualquer conclusão.
O primeiro ponto (9 páginas) acima referido, subdivide-se em outros três: Rupturas e Demarcações; A Construção da Teoria e O problema da Verificação.
Neste capítulo os autores chamam a atenção para aquilo que denominam de «formas contemporâneas de cientismo», nomeadamente, os «imperialismos disciplinares», ou seja, a demarcação rígida de fronteiras entre as ciências sociais, «indesejável feudalização, poucas vezes compensada pela busca de complementaridades e de recíprocas fertilizações que a pluri e a interdisciplinaridade propõem» (p. 60).
Rejeitando a tradição empirista-positivista, citam Popper, Lakatos e Giddens e apropriam-se do conceito de matriz teórica, assumindo que as respostas que se obtém são condicionadas pela forma e os protocolos da pergunta e que «cada formação científica propõe, assim, um conjunto articulado de questões – a sua problemática teórica (…) ponto de partida das pesquisas que se efectivam, define e acolhe problemas de investigação, para os quais se buscam respostas». Surgem teorias auxiliares ou regionais formadas de preposições, conceitos e vias metodológicas capazes de analisar dimensões da realidade «sem quebra dos fluxos de dois sentidos entre o conjunto do paradigma de partida e as operações de recolha e tratamento da informação pertinente» (p. 63). Esta questão relaciona-se com a possível contaminação da observação pela teoria, ao que os autores respondem com a ideia popperiana de substituição do conceito de verdade pelo de verosimilhança, insistindo na ideia da capacidade auto-correctora de percursos já trilhados, mesmo que não surgissem «imprevistos, surpresas e anomalias».
O problema da verificação é-nos apresentado na linha das críticas ao justificacionismo (só seria científico o que fosse positivamente demonstrado pelos factos), citando o «peru indutivo» de Russel e o falsificacionismo de Popper. Uma vez desculpabilizadas das impossibilidades de prova e das dificuldades de invalidações concludentes, os autores criticam Kuhn por considerar as ciências sociais pré-paradigmáticas e propõem que será mais adequado «considerá-las pluri-paradigmáticas», pois cristalizaram «uma longa e parcialmente incomunicável coexistência de paradigmas rivais e de não-paradigmas» (p.67).
Assim, relativizada a lógica da verificação, o problema desloca-se para os procedimentos de pesquisa, os quais são abordados no capítulo seguinte, «Problemas Específicos da Observação e da Medida em Ciências Sociais», o qual de subdivide em dois pontos: A Medida e a Construção de Indicadores em Ciências Sociais e Relações Sociais de Observação e Teorias Auxiliares da Pesquisa.
Ao longo das 10 páginas que constituem este capítulo, os autores centram a sua atenção nos indicadores, ou melhor, na tradução dos conceitos em bons indicadores (variáveis ou índices), porque «só estes têm efectiva utilidade para a análise de situações concretas, visto que também só eles são adequados à medida dos fenómenos sociais» (p. 69). Definem indicador ou variável como «um conceito que permite, em relação a um objecto de conhecimento teoricamente relevante, operar no mesmo uma partição em classes de equivalência mais ou menos extensas» e valor como o «predicado ou característica atribuído a qualquer elemento das classes de equivalência do conjunto considerado» (p. 70).
O grande problema que se coloca na selecção dos indicadores é o da validade da medida, ou seja: como decidir se, com os indicadores seleccionados, se está a medir de facto aquilo que se quer medir? Esta operação é de um grau de complexidade muito grande, o que aumenta ainda quando se passa dos indicadores definitórios (por exemplo, a idade) aos correlacionais internos (usar, por exemplo, a profissão como único indicador para inserir numa classe social pode ser redutor) e/ou externos (definir o status socioeconómico como indicador de certos valores) ou aos de inferência (usados quando é impossível observar os atributos a operacionalizar).
Citam várias propostas de ultrapassagem destes problemas, como as de Glasser e Strauss e Hubert Blalock, no sentido de «se accionarem teorias auxiliares particulares articulando, em redes conceptuais suficientemente densas, os operadores teóricos pertencentes a cada um dos níveis de especificação estratégicos com os indicadores e as soluções técnicas que regionalmente lhes correspondam no plano da observação empírica» (p. 75).
Desta problemática decorre a grande dúvida: estarão os cientistas sociais condenados a confiar apenas na intuição?
Os autores acreditam que não e invocam vários argumentos, entre os quais, os progressos que se têm verificado no aperfeiçoamento das técnicas de recolha de dados, nomeadamente «sobre a pesquisa de terreno em sociologia e o trabalho de campo em antropologia e sobre o inquérito por questionário (…) boa demonstração de que o nosso optimismo quanto às possibilidades de uma reconversão inovadora da metodologia neste domínio está longe de ser infundado» (p.76).
O artigo termina com uma alusão a possíveis enviesamentos nas pesquisas decorrentes daquilo a que Pierre Bourdieu denominou de «mercado linguístico», o qual determina os actos de fala e pode conduzir a demissões, silêncios, evitamentos, delegações em informantes considerados privilegiados e bem-falantes, citando a boa alternativa da entrevista colectiva. Esta técnica, apesar de reduzir «o grau de tensão inibidora associado à relação convencional inquiridor-inquirido», pode também «favorecer o exercício de formas de censura cruzada». No entanto, a constatação de todas estas perplexidades metodológicas não invalida a sua ultrapassagem «se formos capazes de cruzar numa rede conceptual necessariamente densa e complexa, hipóteses relativas à teoria do objecto (principal) e a teorias auxiliares da pesquisa em que um conjunto de elementos de objectivação das relações sócio-simbólicas de observação ocupe posição central» (p. 78).
ANÁLISE CRÍTICA
A leitura atenta deste estudo confirmou-me aquilo que os nossos trabalhos nesta unidade têm mostrado e que as nossas docentes tão bem têm demonstrado: a investigação em educação e ciências sociais tem as suas especificidades. Por outro lado, a crise do racionalismo tem demonstrado que todo o conhecimento é socialmente construído e a busca de objectividade no sentido cartesiano não é definidora da ideia de ciência. A meta das ciências é a explicação de fenómenos e a busca de soluções, passando pela definição racional de problemas e respectiva pesquisa. Cada disciplina acede ao estatuto de ciência quando é capaz de construir o seu objecto e elaborar um conjunto coerente de conceitos e relações entre eles (teorias), submetendo-se a sucessivas provas de validação. As explicações científicas só o são, se testáveis, mas isto não implica submissão ao modelo lógico-matemático. Os fenómenos sociais são irrepetíveis e fluidos, logo complexos e pluridimensionais e a sua apreensão é sempre útil de qualquer ângulo, portanto, a subjectividade não só não é obstáculo como até é enriquecedora, desde que sejam respeitados critérios rigorosos e diversificados de recolha. Não se pretende nunca prever fenómenos, mas tão só compreender a realidade.
Subscrever:
Mensagens (Atom)